Perceber o Jardim das Ondas

Para se perceber um pouco melhor o Jardim das Ondas, Rui Sadio, membro do grupo “Pela Qualidade Urbana do Parque das Nações“, apresenta excertos de entrevistas com os co-autores Fernanda Fragateiro e João Gomes da Silva retirados da dissertação de mestrado em Arquitectura “Fronteiras e situações de contacto na obra de Fernanda Fragateiro” de Maria Azevedo Mendes de Sousa Eiró (IST – out 2012).

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ENTREVISTA REALIZADA A FERNANDA FRAGATEIRO A 28-02-2012, NO SEU ATELIER 

(…)

Tem vindo nos últimos anos a colaborar com vários arquitectos. Como distingue as diferentes relações? 

(..) O José Veludo é uma pessoa mais técnica, aliás, ele era uma das pessoas, que em relação ao Jardim das Ondas, estavam um bocado mais cépticas. Mas porque ele tinha uma noção de que aqueles espaços são extremamente difíceis de manter, portanto, a preocupação dele era em como é que se manteriam aqueles montes de terra cobertos de matéria vegetal com a enorme carga de utilização diária… E o que eu disse sempre foi: isto tem de ser tratado como uma coisa muito especial, não pode ser tratado como um relvado qualquer. Se é um espaço onde podem acontecer coisas muito diferentes daquelas que acontecem num jardim normal tem que se ter esse tipo de cuidados, portanto, tem que ser constantemente reparado e há zonas que têm que ser vedadas quando estão muito desgastadas. Ele foi das pessoas que fez bastante força para que eu introduzisse matérias duras, e eu disse sempre que não, sabendo obviamente que seria mais difícil.

No texto sobre o Jardim das Ondas, presente no catálogo da exposição: Co-laborações: Arquitectos/Artistas, é referido como um projecto de colaboração que dilui todas as linhas que separam artistas de arquitectos. Isso aconteceu na prática, no processo criativo ou construtivo ou vem só da imagem final da obra? 

Embora seja um trabalho de colaboração, tem uma linha divisória até bastante marcada. No fundo, o que o João Gomes da Silva faz, é permitir que aquele projecto aconteça. Claro que, o deixar que um projecto aconteça já é uma coisa muito importante porque, se olhar para o desenho urbano da zona de intervenção da Expo e se olhar para o desenho que tem a ver com a parte paisagística, projecto também do João Gomes da Silva, aquele jardim é um objecto estranho que aterrou ali e que rompe com aquela linguagem ‘mais natural’ do projecto. Portanto, eu proponho aquele projecto e concebo-o sozinha e o que o João faz, é entender, respeitar imenso a minha proposta e contribuir com o saber dele para que aquele projecto seja possível. Os outros paisagistas ligados ao espaço da Expo, achavam que aquele espaço não era viável, que não funcionava ou que tinha uma artificialidade que não coincidia com a linguagem do resto do espaço. Não concebemos aquele projecto juntos, mas o João Gomes da Silva teve, neste cenário, a sensibilidade e a abertura para dizer: “eu vou ajudar a artista a fazer o seu projecto e vou pôr todo o meu saber ao serviço”. (…) E isso foi muito importante porque havia muitas resistências ao projecto.

A sua intervenção para a Expo’98 foi singular e díspar das dos outros artistas, porquê? Como surgem estas intervenções? 

É muito simples a forma com nasceram as cerca de sete intervenções que fiz no espaço da Expo. Tudo começou com um pedido do Arq. Manuel Salgado, para que eu resolvesse o revestimento do muro de entrada dos Jardins da Água. Um pedido que é clássico, ou seja, é para resolver um revestimento, uma superfície, um desenho que se aplique num chão ou numa parede que já está desenhada, que o artista é normalmente chamado, e foi só para isso que ele me convidou e claro que eu fiquei muito contente por trabalhar naquele espaço da Expo e ter, pela primeira vez um projecto público de grande escala e com a sorte de ter meios disponíveis para o fazer.

Pedi primeiro, que ele me explicasse o que eram os Jardins da Água e há medida que ele me ia explicando e mostrado o projecto, eu ia, de uma forma muito naïf, criticando e propondo outras soluções (…) Neste momento, penso sinceramente que, também pelo facto de os arquitectos estarem tão cheios de trabalho, o Manuel achou muito bem-vindo que alguém de fora interviesse, e acabou por dizer: então resolve, então pensa. Assim nascem um muro, uns bancos, um chão e umas paredes de um lago e, quando se chega ao fim dos Jardins da Água, há um espaço vazio ainda pouco definido, que me interessou imenso. Para esse espaço pedi especificamente ao Manuel para fazer um jardim.

Foi então o seu primeiro projecto para um jardim? 

Sim, nunca tinha feito um jardim na vida. (…) Fiquei seriamente a pensar sobre, como é que podíamos criar ali situações de experiência de espaço, diferentes daquelas que já estavam autocriadas pela forma muito simples e quadriculada pela qual este se organizava. A questão que se punha desde logo, era que quando olhava para o rio queria esquecer tudo o resto, mas não percebia porque é que não se conseguia criar qualquer coisa que tivesse a ver com a subtileza, com o movimento, com a leveza e com a força do movimento do rio. Se todo o tema da Expo era sobre o mar, porque é que tudo estava a ser construído de uma forma extremamente rígida?

Porque opta por modelar o terreno e realizar um jardim, atípico, totalmente revestido a relva? 

Eu acho que muitas vezes os jardins mantêm a mesma lógica que resto do espaço urbano. São espaços segmentados, cheios de atravessamentos, caminhos, zonas para sentar, etc. A experiência que eu tive, em pequenina, de viver junto a um jardim do velho Caldeira Cabral, no Montijo, que é um jardim muito inglês, com grandes planos de relva, ou seja, espaços muitíssimo flexíveis onde podia pisar a relva, onde não tinha que estar num caminho ou sentada num banco de um jardim. (…) Essa experiência influenciou-me muito e durante muito tempo não conheci, em Portugal, mais nenhum jardim onde se pudesse pisar a relva. Portanto, isso era a experiência principal de espaço que eu queria reproduzir.

Estes projectos estiveram integrados no programa de arte pública da Expo? 

No catálogo da Expo, o meu projecto está nos projectos de arte pública simplesmente porque era estúpido separá-los, mas eu trabalhei, penso eu, de forma diferente dos outros artistas. No fundo, eu colaborava com o atelier do Manuel Salgado, o RISCO, e depois, mais especificamente com o João Gomes da Silva, portanto, era quase como se eu fosse mais um membro da equipa. Havia de facto um programa de arte pública, dirigido pelo meu marido e para o qual eu não fui convidada, mas para o qual foram escolhidos um série de artistas. A partir do momento em que o Manuel Salgado me convidou, ficou logo muito claro que eu não estava ligada ao programa de arte pública.

Quem fez a produção das obras? 

A produção dos meus trabalhos foi feita pela RISCO, na altura não fiz, mas é uma coisa que agora faço sempre. Naquele caso eu nem sequer tinha experiência, portanto, o que eu fiz, foi a parte de projecto e depois a RISCO resolveu toda a parte técnica, de projecto e de produção ou encomenda das peças. No caso do Jardim das Ondas foi o atelier do João Gomes da Silva.

Existe nesse processo uma certa perca de controlo pelo facto de não ter sido a Fernanda a tratar da produção das peças? 

Não houve, neste caso, porque eu estive muito próxima e considero, que tive até bastante controlo em ambos os jardins. Por exemplo, no muro, desde a escolha do material, ao esquema de cores, até à disposição e colocação das pastilhas de vidro, foram tudo processos totalmente controlados por mim. Os bancos, também em pastilha de vidro e com frases da Virginia Wolf retiradas do Livro das Ondas e o desenho da calçada foram executados conforme desenhos feito por mim, assim como os painéis cerâmicos das algas, já no fim do jardim, foram revestidos com um vidrado especial feito com uma técnica descoberta por duas amigas minhas para eu utilizar ali. Portanto, acho que houve um controle muito grande.

No Jardim das Ondas, também houve um controle no terreno, embora a primeira vez que se fez o jardim ele não ficou bem construído, quando se reconstruiu tivemos tempo para refazer exactamente como queríamos.

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ENTREVISTA REALIZADA A JOÃO GOMES DA SILVA, A 30-01-2012, NO ATELIER GLOBAL ARQUITECTURA PAISAGISTA 

Começo por lhe pedir para descrever a sua intervenção no projecto da Expo’98. 

Eu fui co-autor, com o Arq. Manuel Salgado, do plano que ganhou o concurso para o recinto da Expo’98 e depois tivemos a tarefa de fazer, o que se chamou na altura, projecto de solo. Fizemos, em colaboração e a vertente de colaboração estendesse aqui a todos os intervenientes, o projecto de espaços públicos da Expo, no seu todo. Começando pelo que constituiu uma espécie de plano geral, no qual uma série de regras e elementos de base se estabeleceram, nomeadamente, a relação entre o espaço público, a sua infra-estrutura e a tão importante revelação ou ocultação da mesma. A partir do momento em que se fez esse trabalho de base, começaram-se a identificar os temas de trabalho mais isolados e autonomizaramse alguns projectos, quer para o meu lado, quer para o lado do Arq. Manuel Salgado e do RISCO. Surgiram assim, vários espaços, entre eles os jardins e, a certa altura, pensou-se que seria interessante, antes de se começar a fazer qualquer projecto, envolver outras pessoas que pudessem pensar e ajudar a conceber o espaço público.

Refere-se agora aos artistas? 

Estamos em finais dos anos 90, ou seja, vimos de uma cultura, estabelecida nas últimas duas décadas (80 e 90), que assentava na ideia de espaço público e da interacção com as artes. Assim surgiu a ideia de convidar vários artistas e criar um programa de arte pública, a desenvolver no âmbito da Expo. Portanto, para além do envolvimento dos engenheiros, foram convidados vários artistas para intervir no espaço, alguns intervieram de maneira mais tradicional, trabalhando sobre os pavimentos a partir de padrões regulares, abstractos ou figurativos; outros trabalharam de uma forma mais tridimensional, ou seja, sobre a forma de esculturas ou de instalações e outros trabalharam de uma forma mais insidiosa mas também mais intensa ou intrincada como é o caso da Fernanda Fragateiro.

Como distingue este Jardim, dos Jardins de Água, em termos de envolvência dos vários intervenientes? Considera que foi também um projecto colaborativo ou foi somente um projecto conjunto? 

Os Jardins de Água e o Jardim das Ondas foram dois jardins que se autonomizaram no desenvolvimento do projecto de espaço público. O projecto dos Jardins de Água, foi conduzido pela RISCO e portanto, houve uma liderança em relação a esse processo e o nosso envolvimento numa outra posição, que não a de coordenação ou de liderança, mas talvez de colaboração. O Jardim das Ondas tinha um sentido diferente dos Jardins de Água e era da nossa inteira responsabilidade e mais tarde, seria também, da Fernanda Fragateiro.

Como surgem os temas para ambos os jardins e como afectam estes, o desenho dos espaços? 

O pensamento que está por trás do desenvolvimento dos espaços da Expo’98 e da própria exposição em si, é ainda muito influenciado pelo pensamento pós-moderno da tematização da arquitectura e da figuração das ideias. Portanto, a utilização dos temas de uma forma destacada, serve muito o propósito de uma exposição, que é moldada por um acontecimento mais do domínio do marketing (…). A Expo 98, celebra os oceanos e sua importância a partir de muitos pontos de vista, entre os quais, a questão da relação entre os vários cantos do mundo através dos oceanos. Do tema geral começam a declinar, uma série de outros temas como os

Jardins de Água ou o Jardim das Ondas. Os temas são escolhidos por um gabinete, ou se quisermos, um corpo dentro da própria Expo’98, que basicamente pensava o tema dos conteúdos. Toda esta questão dos temas esteve muito presente na concepção do evento em si, tanto na questão dos conteúdos e dos espaços, como dos conteúdos e das exposições e ainda, dos conteúdos e das instalações. (…) Os Jardins de Água, por exemplo, foi um tema que nos foi proposto, não fomos nós que inventámos, aliás, nós fugimos dos temas como ‘diabo da cruz’ porque não trabalhamos a partir de uma ideia de figuração ou de configuração, mas digamos que, aquilo que foi entregue aos responsáveis pelo conceito, neste caso arquitectos, arquitectos paisagistas e artistas foi esse tema propriamente dito.

Como distingue o Jardim das Ondas, dos Jardins de Água em termos de programa e envolvência dos vários intervenientes? 

Os Jardins de Água são determinados pela ideia de querer fazer um conjunto de espaços públicos com uma função fundamentalmente de descanso, de lazer, de uma certa alternância em relação à visita dos pavilhões e de um contraste com os espaços de grande concentração de gente ou de direccionamento de fluxos. O Jardim das Ondas, supostamente seria um espaço de um lazer ainda mais profundo, ou seja, a ideia é que fosse um grande espaço aberto e relvado, que criasse uma grande superfície de estadia e permanência na margem do rio. Portanto, são duas situações um bocado diferentes mas de função similar e, se reparar bem, a estrutura dos Jardins de Água é uma sequência de espaços, uns mais do domínio do duro, do artificial, do pavimento; englobam toda aquela parte central que cruza fluxos e nos dois extremos, encontram-se espaços mais do domínio do jardim. O Jardim das Ondas constitui uma só unidade espacial.

Nesse sentido, o Arq. Manuel Salgado propôs que trabalhássemos juntos, o RISCO, nós e a Fernanda Fragateiro em relação aos Jardins das Águas. Em relação ao Jardim das Ondas, que era um projecto que nos tinha sido atribuído em exclusivo, com o desenrolar do processo acabamos por envolver a Fernanda Fragateiro e acabamos até, por desistir (…) de uma configuração de espaço que já tínhamos desenvolvido e abraçámos o projecto que fizemos com ela.

Portanto foi uma escolha que aconteceu de uma forma quase natural e que surgiu encadeada com os Jardins das Águas? 

Foi, foi uma que surgiu da naturalidade como a nossa relação de trabalho se desenvolveu.

Agora incidindo no Jardim das Ondas, em alguma altura do processo surgiram questões de autoria, tendo também em conta que já havia, da parte do arquitecto, um estudo desenvolvido para este espaço? 

Devo dizer, que a coisa foi muito personalizada em termos do trabalho desenvolvido entre mim e ela. Ao contrário de outros espaços que envolveram outras pessoas, houve, de uma forma talvez mais inconsciente da minha parte e de uma forma mais controlada e consciente da parte dela, tal como é muitas vezes próprio entre os homens e as mulheres, essa intenção e disponibilidade. Sobretudo disponibilidade para o fazer.

Portanto, aquilo que foi a minha posição foi – Bom, temos uma hipótese mas estamos completamente abertos para explorar outra e portanto, como é que vamos fazer, como é que vamos trabalhar? A posição do lado dela foi um pouco diferente, até porque os artistas funcionam muito mais dependentes da noção de autoria e trabalham de uma forma normalmente muito mais isolada do que arquitectos. No meu caso de arquitecto paisagista, estamos habituados a ter que colaborar com outras pessoas para poder concretizar as coisas. Os projectos são coisas muito complexas, então estes espaços públicos, são muitíssimo complexos porque envolve muita gente, muitos problemas.

Neste caso concreto houve essa disponibilidade e, essa disponibilidade é o mais importante para se eliminarem esse tipo de problemas que surgem quando a questão da autoria se põe. Portanto, isso não foi discutido inicialmente, daquilo que me recordo e posteriormente não se pôs esse problema.

Como decorreu a fase mais conceptual do projecto, foi um processo partilhado? 

O que se passou, de um ponto de vista muito prático foi que, uma vez entendidas ambas as posições, fizeram-se reuniões e sessões de trabalho nas quais, a Fernanda Fragateiro disse que gostaria de fazer um projecto que de alguma maneira se baseava num livro, numa referência que ela tem da Virginia Woolf, que é o ‘The Waves’ (1931), que aliás aparece também no Jardim das Águas. A Fernanda trabalha muito a partir da reflexão e do pensamento sobre as realidades em que está interessada no momento. Apresentou-nos então, uma proposta sobre a forma de uma maquete de gesso, que surgiu do trabalhar sobre as formas da água. A água que é aparentemente uma matéria formal, na verdade não o é, porque a água, sendo uma matéria com propriedades que não se ficam apenas pelo plástico, deforma-se constantemente em função da energia que possui ou em função do elemento que a contem, ou seja, a água ao ser representada através da forma surge de uma maneira absolutamente transfigurada.

Na verdade, aquilo que a Fernanda Fragateiro propõe, é a configuração de um conjunto de formas com escalas absolutamente transgredidas. Não há uma escala comum às formas, há um espaço em que coexistem várias formas de muitas escalas, que aparecem compostas nesses vários estudos que ela fez a partir de modelos em gesso e também de fotografias. Ela debruça-se sobre um conjunto de formas que são normalmente próprias da relação e, mais exactamente, do contacto entre o mar e a terra. Essas formas, compostas e articuladas entre si, são próprias à água nos seus diversos estados e formas de energia, são próprias daquilo que a água imprime na terra. Por exemplo, há um conjunto de formas que representam de alguma maneira o movimento provocado pela energia transmitida à água pelo vento, há outras formas que têm a ver com a inscrição que a água faz na areia, há outros momentos em que se observa a forma de quando um pingo cai num plano de água. Estas formas têm simplesmente a ver com a impressão da água, com o efeito da água sobre a matéria e não a água em si. (…)

Qual foi a sua reacção a esta proposta, já que, a passagem destes esquemas conceptuais para o desenho e mesmo materialização nem sempre é óbvia ou fácil? 

Há na tradição dos anos 70 na arquitectura paisagista moderna, pode-se chamar assim, sobretudo, em França e na Bélgica, a que se chamou “Jardins Culture”, ou seja, “Jardins Cultura”, em que a construção de espaços a partir da modelação do terreno, que é uma das três grandes tectónicas da paisagem, foi muito utilizada, sobretudo, num determinado tipo de desenvolvimento urbano, pós Carta de Atenas. (…) Os “Jardins Culture” surgem da vontade de criar espaços públicos a partir de uma perspectiva plástica e muito livre em relação ao espaço em si. Nós podemos ver alguns exemplos disso em Portugal, nos Olivais Sul. (…) A minha reacção é então, mais ou menos esta – Bom mas isso é um “Jardin Culture” dos anos 70 e passados 20 anos, isto é ainda um conceito muito presente, portanto, tenho um certo receio da colagem a essa imagem. E ela disse – Não tenha receios, isto é uma outra coisa. E como a minha posição desde o início era bastante aberta, disse – Bom, se é outra coisa, vamos tentar perceber o que é.

Passando agora para a questão do projecto, ou seja, já de desenho do espaço…

O que fizemos em seguida foi tentar perceber, através de desenhos, esquiços e de várias maquetas que a Fernanda foi fazendo e ainda de desenhos e cálculos que nós também fomos fazendo, como é que essas formas, com escalas muito diversas convocadas para o mesmo espaço, se poderiam articular, tomar forma e começar a concretizar. Obviamente que se queremos convocar várias formas no mesmo espaço precisamos de uma unidade, precisamos de uma certa abstracção relativamente à matéria, ou seja precisávamos de uma matéria única e portanto, a relva aparece como material que estabiliza as formas que são feitas com terra.

Depois há problemas técnicos que se põem na construção daquelas formas, porque a certa altura, temos ondulações que são bastante declivosas, não é? Ora a matéria tem propriedades físicas e momentos de estabilidade e de instabilidade, nós não íamos fazer aquelas formas em betão, não íamos fazê-las em gesso, não íamos fazê-las em nenhuma matéria estável, mas sim em terra e depois, íamos estabilizá-las e sobretudo unificá-las com relva.

Isto parece tudo muito simples mas, na verdade, teve de se perceber como é que se conseguia, primeiro, chegar a uma forma final muito complexa. Segundo, torná-la possível de construir e em último, resolver todos os problemas técnicos que estão inerentes. Escolhida a matéria que era a relva, perceber que várias relvas tinham ali que existir e como as manter num contexto mediterrânico de verões quentes e secos. Evitámos colocar candeeiros ou focos, a não ser muito pontualmente, no conjunto de árvores, que nós propusemos e a Fernanda decidiu juntar. Que são um conjunto de choupos plantados sobretudo num dos limites, para que a sombra, quando a luz sobretudo Poente, começa a ser mais baixa, se projectasse para o interior do espaço e o tornasse não só habitável no Verão mas, que cria-se uma amenidade inerente ao conforto e que faz parte deste sentido lúdico característico deste espaço em particular. Todas estas questões, que se envolvem com a possibilidade de ‘fazer’, que é própria da construção de projectos artísticos, unem-se às da construção de espaços públicos e de espaços de paisagem, como a questão do conforto, da possibilidade de ser mantido. Depois há outras questões que têm haver, com a apropriação e que são bastante interessantes.

Durante a fase de construção, obviamente surgiram problemas ou questões com ela relacionadas, como foi acompanhado esse processo? 

A Fernanda Fragateiro é uma pessoa que trabalha tanto na fase conceptual, como na fase de produção ou para nós, a fase de obra. Foi um trabalho muito conjunto, sobretudo o lado escultural, de moldar o terreno e a confirmação e ajuste da forma, foi algo que foi bastante acompanhado por ela, até porque tinha objectivos, bastante concretos, em relação a isso. Eu fui pondo questões e fui, no fundo, ajudando a concretizar esse trabalho, através de técnicas topográficas escolhidas e utilizadas para transpor os desenhos que tínhamos feito para o espaço.

Depois há um momento, em que se atinge a forma pretendida e se faz o revestimento com tapetes de relva. A relva foi aplicada de uma maneira muito rápida, para que o vento não destrui-se ou altera-se as formas (…). A área foi reservada e a relva ficou a enraizar durante algumas semanas. Estes trabalhos finais de pavimentações, revestimentos e plantações, sobretudo plantações de revestimentos, são sempre os últimos a serem feitos e, apesar de ter havido uma excelente coordenação do conjunto de obras no recinto, as coisas depois precipitaram-se. Mas quando chegou o dia, a relva estava instalada e o projecto da Fernanda e nosso estava concretizado.

Essa dicotomia entre um objecto de arte e um espaço de exaustiva utilização foi tida em consideração? 

Desde a arte moderna à arte contemporânea, a interacção com as pessoas é um factor chave, e aqui, mais uma vez foi um pressuposto do projecto e, um aspecto talvez tão importante quanto a concepção e produção do objecto artístico, que neste caso é o espaço. Do meu ponto de vista esta interacção é fundamental porque, basicamente, estamos a criar um espaço público e minha perspectiva era: Se é um espaço público, como é que ele se apropria e como é que ele resiste? Há aqui situações de um limite de fragilidade. Aquelas pendentes e encostas são muito frágeis do ponto de vista da solidez, portanto, quando há uma apropriação que é muito intensa e sendo a relva um material vivo, quando é muito pisado chega a momentos de uma certa instabilidade. Ai iniciou-se outro processo muito importante, que foi a observação dessa apropriação através de várias formas de registo, que foi também, objecto de um tipo de comunicação enquanto projecto.

Agora, passados quase 14 anos, como olha para este espaço que co-criou? É um jardim ou é uma obra de arte? 

A minha opinião é que o jardim é essas coisas todas. Não estou muito preocupado com a categorização, até porque existe um território deliberadamente híbrido e é essa hibridez e essa fusão, se bem que com objectivos e olhares diferentes, é o que torna o Jardim das Ondas numa coisa única, na qual, a forma como as pessoas se relacionam com ela é o fundamental e é daí que se retira essa experiência.

Há vários registos que são feitos sobre esta obra, uns são do domínio da fotografia, portanto, estáticos e no fundo, gestos que objectualizam este espaço vivido, mas há um outro registo muito importante, feito por um cineasta, a pedido da Fernanda. É um registo dinâmico no qual as imagens são tomadas a partir de um ângulo fixo e por fracções ao longo de 24h, que montadas sequencialmente revelam, num determinado tempo, a dinâmica do espaço e as diversas formas como pessoas com diferentes interesses, miúdos, jovens, adultos e pessoas mais velhas, utilizam o espaço a várias horas, com luz diferente e com todas as dinâmicas do próprio espaço. Há uma altura em que a rega começa a funcionar, as sombras movimentam-se quase como pessoas e tudo se sucede ali. Todo o tipo de interacções entre as pessoas, entre as pessoas e o espaço, tudo inimaginável sucede ali. (…)

Portanto considera irrelevante ou desnecessária a catalogação deste tipo de espaços? 

Não, eu acho que é preciso catalogar, no sentido em que, quando reflectirmos sobre as coisas, reflectirmos a partir de determinadas perspectivas. Estas reflexões são sempre feitas de uma perspectiva de limites disciplinares ou da observação dessa transgressão das fronteiras disciplinares, (…). E nesse sentido, é muito interessante, especialmente para mim, perceber de que forma, de que processos e a que resultados se chegou com estas intervenções que não são originais ou originadas nesse momento. A colaboração entre artistas e arquitectos existe desde sempre e portanto, essa hibridez e essa complexidade no espaço, que é própria da arte em conjunto com a arquitectura, existem também desde sempre, ou seja, o que existe é um revisitar dessa disponibilidade naquele momento.

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